“[…] a visibilidade […] desativa em parte a carga de violência social de que o insulto é portador. Não dá motivo para a injúria; talvez seja, ao contrário, uma superfície refletora que rebate a injúria e destrói, ainda que parcialmente, sua terrível eficácia.”

ERIBON, Didier. Reflexões Sobre a Questão Gay. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2008. 

Jan(diro) Adriano Koch – Núcleo de Diversidade: Vamos começar pelas origens. De onde tu és?

Dandara: Eu nasci em Estrela. Sou de 1981. […] Sempre fui muito feminina. Desde o tempo de escola. Na época, sofria muito bullying, mas não se usava essa palavra. Eu acho que eu sofria muito mesmo. Acho que no Ensino Médio não tanto, mas no Ensino Fundamental eu chorava muito. Com o tempo,  fui amadurecendo a ideia de ser homossexual. Naquele tempo era tabu falar de homossexualidade. Eu tinha 19 anos quando me assumi. Não virei trans automaticamente.

Jan: Como foi a reação da tua família a partir do momento em que você se colocou para eles como alguém com orientação sexual/identidade de gênero diferente do padrão? Como foi quando eles identificaram? Se há como saber quando isso aconteceu…

Dandara: Foi muito difícil. Me abri com a minha mãe, contei para as minhas irmãs, contei por último para o meu pai, que é a parte mais difícil, acredito. Para o menino, se assumir para o pai é complicado. Desde pequena, eu achava lindo o batom. Achava lindo a mãe botando brinco. Achava lindo aquele salto, eu botava, aí meu pai me batia. Depois eu colocava de novo… Eu achava homem bonito, mas ainda criança não entendia o que era isso. Mais tarde, comecei a pensar que era coisa do Diabo. Chegou uma época em que tentei me mutilar, me matar, porque eu não achava que aquilo era certo.

Jan: Além do núcleo familiar e da escola, em quais lugares foi difícil revelar a homossexualidade/transexualidade no Vale do Taquari?

Dandara: No trabalho, eu vi que aquilo [usar roupas do sexo feminino] estava interferindo. Fui demitida por ser homossexual. Não vale a pena citar nome de empresas. Não foi uma, não foram duas, não foram três. […] entrei em uma empresa onde tive que me “corrigir” muito… Infelizmente, trans, aqui na região, é símbolo ou sinônimo de prostituição. Isso é algo que precisamos tirar. Eu  morei em Goiânia… Lá se vê trans trabalhando em salão, lá se vê trans trabalhando em mercado, lá se vê trans trabalhando em loja, lá se vê trans trabalhando como atendentes, como recepcionistas de clínica. Me diz onde você vai ver isso aqui?

Jan: Até um momento você se colocava como homossexual. Quando surgiu a noção de “trans”?

Dandara: Foi a parte mais difícil da minha vida. É quando o corpo de menino começa a criar curvas que a gente desconhece. É quando o teu próprio pai não te identifica mais como aquele menino…

Jan: E tinha alguma referência na qual uma trans podia se inspirar localmente?

Dandara: Na realidade, foi por apoio de uma outra trans, que não mais mora aqui. E tinha a Malu Bismarky, que todo mundo conhece.

Jan: De onde veio a inspiração para o teu nome?

Dandara: Na verdade, foi uma brincadeira entre amigos. Um deles mora em Goiânia. Foi em um barzinho.“Darling?” Não gostei. “Dandara?” É… Dandara. Já entrei em processo [para alteração do nome nos documentos], mas barrei em algumas “vírgulas” da parte jurídica. Mas vou voltar ao processo.  A “transformação de gênero” para a minha família foi muito difícil. Ainda é. Principalmente pelo meu nome. Minha mãe me chama pelo nome de nascimento. Meu pai também. Por mais que minhas primas, meus parentes me chamem de Dandara …

Jan: Algumas vezes, li postagens suas nas redes sociais e notei críticas contundentes aos homossexuais do Vale do Taquari. Faço as minhas – de forma semelhante – muitas vezes. Quero saber mais. Eles também não estão preparados para as diferenças na sigla LGBT?

Dandara: É lógico que não. Eu já fui recusada em salão de cabeleireiro [Dandara tem cursos de formação como manicure e cabeleireira]. Eu recebi vários nãos. Conheço a cultura da região. Não por eles [como pessoas]. Pelos clientes, que vão deixar de frequentar o salão porque lá tem uma trans. Os homossexuais são reconhecidos nessas profissões. Está na hora das trans entrarem nesse espaço.

Jan: Por outro lado, imagino que a relação com as clientes da Dandara manicure e cabeleireira estão quebrando preconceitos?

Dandara: Exatamente. Um dos meus grandes avanços foi conseguir entrar em uma casa de família e ser respeitada como “ela”. Ser chamada de “Dandara”, nossa! Hoje é mais rotineiro. Esses dias fui jantar com meu companheiro e a cliente me chamou no restaurante e disse: “Achei que tu não ia me cumprimentar, sua exibida!” Me cumprimentou, cumprimentou meu namorado. Ela estava com o marido e filho. Isso é muito gratificante. Ser reconhecida como profissional, como pessoa, ver que ela não fugiu de mim. Mas não construí isso em pouco tempo e ainda estou formando clientela.

Jan: “Mulher trans” é um conceito novo. Traz muita visibilidade. É resultado da trajetória de um movimento social. Você está disposta a levar à frente essa identidade ou – como algumas fazem – prefere abandonar o “trans” algum dia por, talvez, ser sinônimo de um histórico de sofrimento na sociedade conservadora?

Dandara: Se a gente esquece do passado, a gente esquece quem a gente é. Eu faço questão de lembrar de muita coisa do meu passado […]. Já vi trans que hoje se dizem mulheres […]. Eu sou uma mulher trans. Tem gente que diz “você é tão linda, que nem parece uma trans”. Mas quem disse que as trans não são lindas?

Jan: Como você vê a concentração de trans na atividade de profissional do sexo?

Dandara: Se as trans estão nesse ramo, é porque tem quem as procure. Se elas estão procurando a região de Lajeado, é porque existe mercado de trabalho. Mas [ser profissional do sexo] não é o peixe que eu vendo. As trans podem estudar, podem ser advogadas, por que não? Podem ser médicas, por que não? Ser trans não significa estar enclausurada [em uma profissão].

Jan: Você tem planos para o futuro?

Dandara: Eu quero me ampliar profissionalmente. Mas não estou com pressa. Tudo vai ter o seu tempo. Futuramente eu quero poder incluir as trans no mercado de trabalho. Ministrando cursos de manicure e cabelo. Com elas trabalhando no meu salão. Mostrar outros caminhos para as que quiserem.

Jan: Já pensou em filhos?

Dandara: Minha mãe veio me fazer esta pergunta faz uns dois meses: “Tu não vai querer ter filho?” Minhas irmãs já tem. Eu perguntei: “Mãe, como é que eu vou ter?” Ela respondeu: “Adota, uai!” Eu achei mágico isso.

 

Os diálogos fazem parte de  entrevista realizada no dia 08/02/2017. A reprodução em impresso (jornal/livro/revista…) fica condicionada à citação da autoria e solicitação por escrito. Contatos: nucleodiversidadedceunivates@gmail.com ou jandirokoch@gmail.com .