Jan[diro] Adriano Koch – Núcleo da Diversidade DCE/Univates – Como estamos focados no Vale do Taquari, sempre começo tentando estabelecer algum vínculo do entrevistado com essa região. Sei que você vai migrar para lá mais tarde, mas vou voltar um pouco mais no tempo. Alex, onde você nasceu?

Alex da Silva (Alex Cascalho): Nasci em Venâncio Aires/RS [município entre o Vale do Taquari e o Vale do Rio Pardo] em 23 de novembro de 1976. Sempre residi aqui, morava no interior e depois vim para a área urbana.

Jan: Podemos dizer, eu presumo, que as pessoas de Venâncio Aires podem ser comparadas às de Lajeado e de outras cidades do Vale do Taquari em termos de mentalidade e comportamentos. Claro, existem especificidades. Os entrevistados costumam falar um pouco sobre como foi a descoberta da sexualidade, o que se pode delinear como marca ou como exceção no interior do RS. Podes falar um pouco dessa parte biográfica?

Alex: Desde os meus oito anos de idade eu já tinha consciência. Eu ia ao colégio, via meu coleguinha, via ele de uma maneira diferente. Como não tinha muita informação na época, achava que era uma doença, que eu era o único. Como em Venâncio Aires não tinha muitos gays [assumidos?] na época, […] eu,  morando no interior, achava que não era normal. Depois que conheci outras pessoas, fui adquirindo mais informações e vi […] que faz parte da natureza.

Jan: Essa sociabilidade gay, essa rede de amigos, você conseguiu formar na adolescência? Quais espaços vocês frequentavam ou ocupavam?

Alex: Estudei no José de Oliveira Castilhos, um colégio cenecista no centro da cidade. Tinha um menino com quem eu tinha contato. Um não sabia do outro. Eu era muito discreto, um enrustido muito discreto. Na época de Carnaval, eu tinha terminado os estudos e ele estava estudando ainda, nos encontramos na frente do clube da cidade. Ficamos jogando conversa fora, lá pelas tantas, um puxou o assunto da sexualidade com o outro. Em resumo: tivemos um ano de relacionamento, eu tinha dezenove anos.

Jan: E a família nessa história?

Alex: A mãe sempre sabe. O pai, às vezes, sabe. Finge que não vê. A minha mãe sabia […]. Ela me chamou para conversar [depois de vê-lo com um namorado], eu abri o jogo. Eu me senti incomodado.  A mãe ficou diferente um mês, eu fiquei mais diferente que ela.  Eu me sentia envergonhado, constrangido. Mas depois foi muito tranquilo. Sempre tivemos uma relação muito boa em casa.

Jan: Isso é bom não é?

Alex: Foi um peso tirado das costas.

Jan: Quando você começa a pensar em festas para gays?

Alex: Como trabalhei de atendente de bar, de garçom, eu conheci um rapaz chamado Augusto, que era gay […]. Um dia ele disse “Alex, vou te apresentar um amigo meu, que é cabeleireiro aqui na cidade, ele conhece mais gays, eu vi que tu estás bem perdido”. Eu não conhecia ninguém. Eu já estava com 21 anos e não conhecia mais gays da cidade. Conheci o Adriano e acabei conhecendo todo resto. Estou falando de 1997. Em 1999, o Adriano disse “Alex, tem festas em Santa Cruz, lá na Rose […]”. Era uma coisa [festa gay] muito escondida, o convite era feito no boca a boca. “A gente poderia fazer uma festa aqui em Venâncio”, sugeriu o Adriano. “Olha, Adriano, eu não conheço ninguém”.  “Mas eu tenho meus contatos”, disse o Adriano. Aí entra o Jaicon na jogada […]. O Jaicon conhecia uma turma em Lajeado. O Adriano tinha os contatos de Santa Cruz. Fizemos no Armazém Disco Bar, que não existe mais. A primeira festa gay de Venâncio Aires foi em 2000.

Jan: E como acontece a mudança para Lajeado?

Alex: Fizemos a festa eu, o Adriano e o namorado dele. Como eles não gostaram muito da experiência, porque pensavam no lucro, enquanto eu pensava na diversão […], marquei com o Jaicon e ele me convidou para ir para Lajeado. Chegamos a um consenso. Fomos atrás da sede. A mãe do Jaicon era uma espécie de ecônomo da sede do Lothar Johann.

Jan: E a ideia de trazer trans, transformistas e travestis para performar?

Alex: [Nesse meio tempo], no finalzinho de 2000, fui a minha primeira festa em Porto Alegre, onde conheci a Laurita Leão[1]. Foi no Era Uma Vez. Ficamos amigos. Conversei com ele, que era um ator de teatro […], ele cobrou R$ 100,00 e veio. Foi um sucesso. Foi na mesma época em que ele saiu em uma reportagem na revista G Magazine. Foi em 24 de março de 2001.

Jan: Vocês investiram nessa proposta? Quem mais veio?

Alex: A Sandra Mara […], a Laurita Leão, a Glória Crystal, a falecida Dandara até está em um flyer, mas ela “deu um cano”. A Glória veio umas duas ou três vezes. Nos anos 90, as pessoas iam à festa e gostavam de ver um show de um transformista […] era glamour, plumas e paetês.

Jan: Como vocês obtinham público?

Alex: Na época eram promoters […]. Tínhamos pessoas em Santa Cruz do Sul, tínhamos pessoas-chave: a Ângela Mimi, a Madelon [que chegou a promover festas em Santa Cruz, na Secreta Mirada, perto do Motel Cascata], o Júlio e de uma delas me fugiu o nome. Eram quatro pessoas em Santa Cruz. Elas organizavam quatro vans. Vinha um micro-ônibus, três vans e mais o pessoal de carro ou vinham de ônibus de linha. Chegavam à rodoviária, a rodoviária de Lajeado ficava cheia de gays [as festas eram bem próximas, na sede do Lothar Johann, atrás do presídio da cidade].  Vinha van de Porto Alegre, de Caxias, onde tinha apenas a Studio 54, e de Estrela. Eu cuidava de Santa Cruz e o Jaicon de Lajeado. Eu distribuía um monte de flyers e eles distribuíam para amigos e conhecidos.

Jan: Quem criava os flyers?

Alex: O Jaicon. Todos tinham o dedo dele. Eu cuidava mais da parte do texto, mas o Jaicon que cuidava da parte estética.

Jan: Você acha que as pessoas estavam carentes de um espaço de socialização, um lugar para namorar e se divertir sem receios?

Alex: Como em Lajeado foi a primeira festa aberta, com mais divulgação, quando a gente foi até as pessoas [para convidar], percebemos que os gays queriam conhecer pessoas. Não tinha um aplicativo, não tinha as redes sociais, quem tinha computador era rico […]. Os gays se encontravam em praça pública, nos banheiros, porque era um ponto de encontro […]. Aqui, em Venâncio Aires, o que tinha? Não tinha nada. [Alguns gays] se reuniam em casas de alguns deles. Em Lajeado, na casa do Vavá. As pessoas se conheciam nas suas cidades ou iam para Porto Alegre. Quando surgiram as festas gays, as pessoas pensavam “opa, eu vou ver muito gay novo, vou ver muita gente diferente” […]. 80 % dos frequentadores das festas iam para conhecer gente nova, até um futuro namorado, para conseguir um futuro relacionamento ou iam para beijar. Iam com intuito de conhecer pessoas, porque se fossem em um bar ou em uma festa tradicional, se beijassem alguém ou andassem de mãos dadas, eram expulsos ou eram espancados.

Jan: E como se dava a parte prática, a locação de espaços?

Alex: Em Lajedo, se chegássemos a um lugar dizendo que era para festas gays, o pessoal não deixava, o pessoal não alugava. No Lothar Johann, nós não precisamos dizer que era uma festa gay, ficou nas entrelinhas. Como o público cresceu muito, vimos a necessidade de ter um espaço maior. O Jaicon foi procurando os lugares e recebia os “nãos” […]. Na sede da Casa Americana, no Bairro Montanha, fizemos a primeira omitindo, dizendo que era um aniversário […]. Como teve som alto, a festa foi até o clarear do dia, e no final da festa um amigo nosso ficou dormindo no banheiro, “montado” de prenda, bêbado […]. De manhã, ele saiu para um mercado na frente. Os clientes do mercado ou açougue foram chegando, era domingo, e ele começou a dançar e a rodar e a levantar [o vestido]. As pessoas olhavam […]. Deu um rebuliço, ligaram para a Casa Americana. Acabou não rolando a outra festa, que estava marcada, que seria o Miss Gay, que foi vencido pela Malu, o primeiro título conquistado pela Malu.

Jan: A festa estava organizada e vocês não tinham mais a sede. O que fizeram?

Alex: Como eles embargaram e a festa já estava marcada, inclusive com o flyer [pronto], nós saímos que nem doidos atrás de outro espaço e não achávamos. Eu passei um dia inteiro procurando, não conhecia Lajeado muito bem. Para ter uma ideia do nosso desespero, fui à sede de um colégio evangélico, luterano […]. A Mica conseguiu contato com um casal, a Luíza e o César, que eram ecônomos do Clube dos Quinze, no Bairro Montanha. Acabamos transferindo a escolha do Miss Gay para lá. No Clube dos Quinze fizemos duas festas, fizemos uma que foi a Festa à Fantasia. O pessoal estava reclamando que na sede do Lothar Johann era melhor, porque tinha um espaço ao ar livre, um pátio. Voltamos para o Lothar Johann. Em 2002, o Jaicon disse “não quero mais”.

Jan: Não apareceu outro que quis participar? Pensando que um organizador tinha que se expor muito mais do que um frequentador das festas, porque ele tinha que transitar nos lugares para conseguir sede, som, bebidas, autorizações, segurança, entre outras coisas.

Alex: Não tinha. Não lembro. Até cogitei […]. Até porque se tivesse alguém interessado, teriam me falado. Da nossa época tinha o […], ele até ia para as festas, mas não gostava de aparecer em fotos. Quem batia as fotos? Eu tirava, o falecido Alberto, um grande amigo que faleceu de câncer aos 29 anos. Algumas vezes, teve um fotógrafo profissional, amigo do Jaicon, que tirava as fotos para nós. Depois da desistência do Jaicon, eu devo ter feito mais umas duas festas em Lajeado.

Jan: Você voltou para Venâncio?

Alex: Voltei. Era muito na contramão fazer em Lajeado. O povo vinha de topic de Lajeado, de Santa Cruz do Sul, de Estrela. Perdi Porto Alegre, Caxias, mas ganhei outros, de cidades menores do Vale do Jacuí. Em 2003, trouxe a Cristiny Bastos [drag que trabalhava no Sungas, em Porto Alegre]. Eu tinha medo de não ser tranquilo lá na sede do Expresso Cruzador, que hoje é a sede do Marasca, que pertence ao Guarani […]. Eu cheguei e falei a verdade […]. Aprendi, em Lajeado, que [omitindo] eu poderia correr o risco de a festa ser cancelada. Na segunda festa, eles elogiaram muito o comportamento das pessoas, eles achavam que festa gay era uma festa só de putaria, onde todos estariam nus e fazendo um surubão. Era essa a ideia que as pessoas tinham. Passei por alguns problemas particulares.  Em 2004, não fiz festa. Em 2005, retornei. Na mesma sede.  Com o passar do tempo, percebi que em Venâncio havia uma aceitação boa […]. Passando na frente do Doctor Pub, em 2006, cheguei com a cara e a coragem, contei da minha pretensão […].

Jan: No centro da cidade? O bar fica em um lugar de muita visibilidade. Foi tranquilo?

Alex: Um dos donos me disse: “Alex, tem regras. Primeira regra: entrou, não sai para a rua. Eu não quero bagunça no meu bar. Eu não quero bagunça na frente do meu bar. Pessoas se beijando, pessoas se agarrando eu não quero na frente do meu bar. Meu bar tem um nome aqui na cidade e eu quero preservar. O que tu fizer lá dentro não me interessa.” O aluguel era alto, cheque-caução antes, a bebida tinha que pegar dele […]. A primeira festa foi muito boa. Pedi para o Wirk [ajudar]. Ele colocou na coluna social dele  Doctor Pub locado. Me precavi de todas as formas,  por causa do falatório, para deixar bem claro que o espaço era locado, que não era o Doctor Pub que estava fazendo uma festa gay. Depois fui para a Sova, que deu um plus no público, eles gostam de coisas novas.

Jan: Nessa época, já estava “explodindo” essa coisa de organizar festas gays por aqui ou tu eras o único?

Alex: A UP começou em 2001, em Santa Cruz. Depois, a Luíza começou com a Pride em Lajeado. Fizeram algumas festas em Lajeado. Eles eram apoiadores da Option Free [nome das festas organizadas pelo Alex]. A Vanessa [Vanzin] começou também. Depois veio o Taverna, em Santa Cruz, que era um bar fixo.

Jan: Os gays entendem que a sociabilidade gay é importante para a autoestima e que você que iniciou essa fase de festas por aqui?

Alex: Para mim é muito gratificante […]. Seria muito interessante para essa nova geração saber que teve uma trajetória, que foi difícil para que eles possam estar aí hoje [… e possam] frequentar uma festa alternativa […]. Teve uma trajetória aqui na região. Teve alguém que começou, que deu a cara a bater […].

Jan: Muita gente não acredita que no Vale do Taquari tenha havido ou ocorram, ainda hoje, casos de violência física e/ou psicológica decorrentes da orientação sexual ou identidade de gênero das pessoas. Você tem muito mais contato com o grupo LGBT do que eu em razão do teu trabalho por longos anos. Pode me citar alguns casos?

Alex: Eu ouvia muito. Por exemplo, dois amigos meus, cabeleireiros… O [fulano] apanhou de relho no calçadão [de Venâncio Aires] nos anos 90. Ele levou tomatada. Tinha uma fruteira. Estavam descarregando frutas e legumes, ele levou uma tomatada […]. Ele voltou, falou com o dono […], mas eles riram dele.  Um amigo meu estava tomando banho de sol, chegou um cara de espingarda e ameaçou dar um tiro. Em Santa Cruz, o Michel estava no Gigante,  nos anos 90, e ele dançou com outro cara. Vieram os seguranças e quiseram colocar ele pra fora. Como tinham muitos gays, eles peitaram os seguranças e não aconteceu. Em outra oportunidade, nesse Gigante, duas meninas foram colocadas para rua. Então, houve sim. O que acontecia era que as pessoas não iam registrar ocorrência, não iam fazer um BO. O [fulano] tomou um soco no centro da cidade […].

Jan: Quando você encerrou a fase de organizador e DJ das festas gays?

Alex: Dá trabalho organizar uma festa. Teve o incidente na boate Kiss. Eu cobrava um ingresso [de valor tal] na Sovinha […]. Tu tens que ter alvará. Em 2005 ou 2006, eu já havia sido notificado de que não poderia fazer show pirotécnico em ambiente fechado […]. Eu respeitei a lei. Os aluguéis triplicaram. Então, voltei para o começo, lá na sede do Expresso Cruzador, uma sede mais rústica, na BR-453, em 2010-2011. Permaneci por dois anos. Aí parei […].

Jan: E os aprendizados dessa experiência?

Alex: As pessoas da noite são muito carentes. Olhando para o lado artístico, a pessoa desce do palco depois de aplaudida, só que ela é uma pessoa. Uma pessoa que tem poucos amigos, que é muito sozinha. Muitas amizades da época eu cultivo até hoje […]. Tem, também, a coisa do ego. Um dia recebi ligação de um amigo [gay] dizendo “Alex, eu gosto das festas de Lajeado, só que eu não acho legal […], acho que tu deverias barrar ou cobrar um ingresso mais alto [das travestis profissionais do sexo].” Eu disse: “Olha, Fulano, no dia em que eu barrar a entrada de alguém pelo fato de ser mais humilde ou por não se vestir tão bem, eu paro com as festas. Porque o meu objetivo acabou. O meu objetivo é unir as tribos, o objetivo da Option Free é unir as tribos regionais […]. Elas vêm, pagam a entrada delas, se divertem. De repente, elas estão esperando a festa assim como você está esperando. Eu não posso fazer isso. Se tu deixar de vir numa festa minha por causa disso, me desculpa, vai ser uma opção tua.” Vivo com a consciência de que fiz minha contribuição.

[1] Personagem do ator Lauro Ramalho.

Os diálogos fazem parte de entrevista realizada no dia 04/04/2017. A reprodução em impresso (jornal/livro/revista…) fica condicionada à citação da autoria e solicitação por escrito. Contatos: nucleodiversidadedceunivates@gmail.com ou jandirokoch@gmail.com .