Jan(diro) Adriano Koch – Núcleo da Diversidade DCE Univates: Olá, Carlinhos. Aprendendo alemão, então?

Carlinhos: Aprendendo um pouco de alemão […]. Acho que foi em Canudos, interiorzão, naquele tempo pertencia a Lajeado. Aconteceu um caso bem interessante sobre esse negócio de língua alemã. Como eu trabalhava na Prefeitura, eu tinha casado com uma ‘deutsch’, uma alemã, uma Hunemeyer, não foi difícil eu aprender umas palavrinhas. Nós tínhamos um time de futebol. O nome do time era “Mané Garrincha”. Naquele tempo, o Mané estava em alta. De manhã, a gente teve um torneio de campo. De meio dia, uma churrasqueada […]. Aconteceu o seguinte de meio dia: na nossa mesa, todo mundo esperando […]. Resolvi dar uma espiada na churrasqueira para ver o que estava acontecendo. Eles estavam em um grupo de três ou quatro pessoas. Eles falavam em alemão […]. Eles discutiam sobre cobrar adiantado, porque ‘se arriscavam’ a ver a “negrada” a comer e a beber e a não pagar. Eu escutei e voltei. Depois pagamos […]. Por isso, é muito bom dar uma treinada no alemão, a gente entender.

Jan: Você nasceu onde, Carlos?

Carlinhos: Em Cruzeiro do Sul. Meus pais já são falecidos, eram também de Cruzeiro do Sul. Minha bisavó, que faleceu com mais de cem anos, nasceu oito anos antes da Lei do Ventre Livre[1]. Como ela nasceu oito anos antes, ela ficou escondida, retirada da senzala. Ela foi criada no mato. Depois […], não sei como eles fizeram, incluíram ela no grupo [dos libertos]. Minha bisavó praticamente nasceu como escrava. Eles vieram mais do “alto”, penso que vieram do lado de Encantado para cima, Nova Bréscia, lá daqueles lados […]. Vieram parar nos morros de Cruzeiro do Sul, acho que por influência da Haenssgen[2], porque eles prestavam serviços de corte de madeira e de pedras. A fábrica de chocolate [Haenssgen] dependia de lenha para acionar as caldeiras. Eu penso que foi isso.

Jan: Depois você veio para Lajeado…

Carlinhos: Passamos muita fome. Nós éramos em seis filhos. Meu falecido pai trabalhava cortando pedras, pedras de alicerce. Eram pedras de meio metro, pesadas. Minha mãe, que também já é falecida,  prestava serviços de faxina, naquele tempo ainda existia esse serviço. E faziam serviços domésticos como limpar a roça. Naquele tempo, eu era pequeno e me lembro de ir junto. Aos onze anos, eu já estava em uma casa de família prestando serviços para a Alzira Lopes, que era proprietária de uma ervateira em Cruzeiro do Sul, a Erva Flávia[3]. Eu prestava serviços,  lavava calçadas, podava, capinava. Coisas que um piá podia fazer. Chamava ela de vó Alzira. Consegui estudar por causa dessa gente […]. Depois vim para Lajeado, estudei contabilidade no Castelinho. Fui para a Univates, era a FATES. Ali ficou comprovado que a discriminação não é somente racial, ela é econômica também.

Jan: Podes comentar um pouco mais sobre isso?

Carlinhos: Na época, a gente fazia o vestibular e torcia para fazer o primeiro semestre e conseguir o crédito educativo, um financiamento. Eu acho que eu era funcionário público, ganhava uma merreca. Não tinha condições. Fazia ‘papagaio’ em um banco para pagar a FATES. Quando vencia o ‘papagaio’, eu ia em outro banco e tomava outro ‘papagaio’ para pagar o anterior. Qualquer um vê que isso não funciona. Eu achei que seria o primeiro da lista [a ganhar o crédito educativo]. Lamentavelmente, não figurei. Ganharam o crédito justamente os que não precisavam […]. Aqueles que estavam na primeira casta da sociedade. Tive que interromper, se foi.

Jan: Como veio a política? Quando você entrou nesse mundo?

Carlinhos: Meu pai era brizolista. Eu nasci em 1955. Quando eu comecei a ver alguma coisa, já era 1964, a gente estava na efervescência do golpe. Quando a gente fazia um gol, a gente não gritava ‘gol’, a gente gritava o nome do Brizola. E quando falávamos o nome dele, éramos reprimidos. A convite do meu amigo Erni Bagatini, que já faleceu, que era amigo do compadre Darci José Corbellini[4], que está muito doente,  em um grupo de amigos, todos do mesmo lado […]. Falaram várias vezes: ‘vai’. Conversei com a ‘companheirada’ da vila Santo Antônio e de Conservas. Eles me elegeram [em 1982, para vereador], o terceiro mais votado. Uma excelente votação, até eu me surpreendi. Até porque, naquela época, um negro de candidato era meio complicado […]. Tinha uns que até riam quando eu chegava para distribuir o santinho. Eu fazia minha campanha com um megafone, ia nos comícios, de casa em casa, muito diferente de hoje.

Jan: Então, ser um vereador negro no Vale do Taquari, região com forte presença de alemães, está ligado às votações obtidas em nichos específicos?

Carlinhos: Conservas, Morro 25 […]. Esse pessoal não via distinção de cor. Não viam isso com tanta ênfase. Em outros lugares eu percebia fortemente. Naquele tempo, Lajeado era bem maior [em extensão geográfica]. Tinha um interior que ia daqui até Boqueirão do Leão. E nós percorríamos todo o interior de Lajeado. ‘Fazíamos’ Boqueirão do Leão, Santa Clara, imagina Santa Clara, tudo alemão,  Forquetinha, Canudos, Marques de Souza, Vila Fão […].

Jan: Quais eram as tuas pautas na Câmara?

Carlinhos: Na época, o principal era fortalecer o partido para bem representar aqueles que tinham confiado o voto na gente. Um partido forte, bem estruturado, uma bancada bem organizada […]. Era muito claro quem era da direita e quem era da esquerda. As pessoas tinham que se definir. Hoje, com essa quantidade de partidos […]. Acho muito ruim quando a pessoa não é quente e nem fria, mas concordo com aqueles que divergem. Fiz duas candidaturas [Carlos também foi Secretário de Obras e da Secretaria do Trabalho, Habitação e Assistência Social, em Lajeado]. Na terceira vez, fiquei de suplente. Procurei fazer um trabalho de conscientização na Câmara. Quando vinha o 13 de Maio, quando eu subia na tribuna […]. Eu tinha colegas que reclamavam, que estavam cansados de ouvir, que não queriam ouvir […].  Aquela indignação deles me dava mais ânimo para falar, porque se eles não estavam gostando do que eu estava falando, é porque era bom. Pena que não consegui fazer passar um projeto de colocar no currículo escolar a educação sobre o cidadão afro-brasileiro.

Jan: Fez o projeto?

Carlinhos: Sim. Falta muito conhecimento […]. Às vezes, penso que se nós tivéssemos conhecimento, não teria nenhum preto gremista. Ele conheceria os estatutos do Grêmio, ia saber da história do Tesourinha[5]. Se o preto tivesse um pouco mais de conhecimento, não daria risada dos haitianos. Acho muito feio um preto rir, desmerecer, discriminar o haitiano. O haitiano vive a mesma coisa que aconteceu com nós, quer dizer, com nós foi até pior, porque viemos na condição de escravos, fomos caçados de dentro das tribos na África […]. Os haitianos estão fugindo da fome […]. São pessoas que merecem todo nosso respeito. Porque estão aqui, longe dos parentes, da língua deles. Fico pensando, eles até têm uma língua. E nós, pretos? Cadê nossa língua? Nossa língua foi literalmente arrancada. Alemão fala alemão, japonês fala japonês, o italiano fala o italiano […]. Negro não tem língua? Os algozes da época não nos deixavam falar nossa língua, porque eles não iam entender […]. Se tivéssemos criado uma cadeira, uma matéria escolar para falar sobre o negro, acho que nenhum negro colocaria bombacha,  negro não iria frequentaria CTG.

Jan: Por?

Carlinhos: Quando eu vejo a História […]. O Rio Grande do Sul fez uma guerra de dez anos. Quem estava lá na frente da Guerra dos Farrapos? Os miseráveis dos negros, de pés descalços, com a taquara na mão, de peito aberto. E os generais, os ‘Bentos”, os caciques em cima dos cavalos gordos com umas belas de umas botas nos pés, com a arma na mão. E os da frente, os chamados lanceiros [negros], de peito aberto, com a simples promessa de que ganhariam a liberdade. Cadê a liberdade que eles ganharam? Não deram nada, deram o ‘caô’ nos negros […].

Jan: Os negros do Vale do Taquari chegaram a se organizar de alguma forma nessa época em que você era vereador?

Carlinhos: Essas coisas eram discutidas. Tinha um grupo de pretos. Esse grupo agia mais em função do Carnaval. O Carnaval ajudava a gente a trabalhar essas ideias. Mas esses grupos se formavam e, depois, a gente não conseguia manter. Os pretos [também] faziam um baile só deles lá no Parque do Imigrante, pegavam um pavilhão. Branco não entrava. Depois foi se abrindo, branco podia entrar, mas não dançava […]. A família Nunes participava ativamente em uma ponta que tinha na igreja do bairro Montanha. No Hidráulica, Tia Moça e Tio Manoel participavam ativamente.

Jan: A situação do negro era debatida?

Carlinhos: Por que o negro ficou para trás? Por que ele ficou atrasado economicamente? Tem um histórico, tem um porquê. Não é porque ele quis. Ele não toma cachaça porque quer tomar cachaça. Ele não trabalha somente como varredor e limpador de rua porque quer limpar a rua. Tem um histórico.

Jan: E os cortes na verba para o Carnaval? Como você interpreta?

Carlinhos: Penso que o Carnaval tem muita coisa a ver com a cultura afro. Mas se nós tivéssemos nos organizado melhor […]. Às vezes, a gente não deve pegar uma coisa que se dá. Lamentavelmente, o povo brasileiro, o negro, não sabe questionar. O povo não questiona. A gente aceita muito fácil as coisas. Por que o Carnaval aqui no Vale foi fraco, por que os municípios tiraram a verba? Criou-se uma dependência e essa dependência escraviza […]. Penso que é uma pegadinha. Tem que se buscar a independência econômica da festa. Não digo que o município não possa colaborar […], pode dar incentivo como dá para a Expovale, dá também para a cultura afro. Mas não pode ter uma dependência 100%. O gerenciamento, o caixa, a independência econômica a pessoa tem que buscar para não ficar presa.

Jan: E a política. Abandonou?

Carlinhos: A política é assim. As pessoas que entram na política se acham capazes de fazer determinadas coisas. Mas a política existe para a gente alavancar ideias. Saí em 1997. De lá para cá, vim percebendo, vem em um crescente, não se busca mais o campo das ideias, dos ideais. A política é um balcão de negócios, mas […] é para defender os interesses coletivos. Me elegi pelo [Bairro] Conservas e aqui na [estrada] Beira Rio não tinha um metro de calçamento. O prefeito tinha interesse em fazer salão para clube de mães, uma pracinha para o bairro dele, não sei o quê para a indústria que elegeu ele. Eu não tinha vergonha em chegar no prefeito, dizer ‘e aqui, como funciona?’  De lá para cá, as coisas foram mudando […]. Se existe o político corrupto, também existe o eleitor corrupto. Os votos não eram mais dados porque tinham ajeitado a comunidade […]. Isso foi descambando, eu nunca tive condições econômicas para fazer esse tipo de política. [Hoje, Carlinhos trabalha com um caminhão de fretes.]

Jan: Para terminar. E a política de cotas para negros, que tem gerado tantas discussões?

Carlinhos: Tem muita gente que é contrária. Dizem que o preto é privilegiado, mas aqueles que falam isso não conhecem a realidade. Como vamos inserir um preto se não abrirmos a porta para ele entrar? Se ele tiver o mínimo de capacidade […]. As cotas são louváveis. É um reconhecimento da nação de que andou mal com o preto, do contrário não precisaria haver cota […]. É a única maneira que tem de o preto entrar no time e dizer que sabe jogar. Do contrário, vai ficar sentado no banco, na reserva, e nunca vai ser chamado. Lamentavelmente, eu vejo muitas pessoas que não aceitam. Mas para falar sobre o preto e sobre o que o preto tem de problema […] só sendo preto para entender. As dificuldades são enormes.

[1] Promulgada em 28/09/1971, a lei estabelecia que seriam livres os filhos de mulheres escravas nascidos a partir daquela data.

[2] A empresa foi criada em 1895 por Frederico Germano Haenssgen e Eleonora Veeck, sua esposa. Fonte: http://www.haenssgen.com.br/sobre/historia/ Acesso em 24/03/2017.

[3] A Erva Flávia surgiu com Alfredo Lopes da Silva (12/05/1986 – 27/05/1932), pai de Alzira (ou Alsira Lopes), casado, em segundas núpcias, com Universina da Rocha e Silva. Fonte: http://abrindobaudoschierholt.blogspot.com.br/2012/08/o-vale-do-taquari-ha-meio-seculo.html Acesso em 24/03/2017.

[4] Ex-prefeito e ex-vereador da cidade de Lajeado/RS.

[5] Osmar Fortes Barcellos (03/12/1921 – 17/06/1979). Foi jogador do Internacional, do Vasco da Gama e da seleção brasileira. Anos depois, o Grêmio, clube sobre o qual pesam as desconfianças de racismo por não ter contratado jogadores negros por longo tempo, o contratou.

Os diálogos fazem parte de  entrevista realizada no dia 17/03/2017. A reprodução em impresso (jornal/livro/revista…) fica condicionada à citação da autoria e solicitação por escrito. Contatos: nucleodiversidadedceunivates@gmail.com  ou jandirokoch@gmail.com .